Introdução
A história dos reis de Israel e Judá, registrada nos livros de Samuel, Reis e Crônicas, é mais do que uma narrativa histórica: trata-se de uma teologia da liderança e da fidelidade à aliança. Observando essa trajetória, é possível identificar não apenas os fatores que levaram o povo de Deus à ruína, mas também um padrão que se repetiria na história da Igreja Cristã. Este artigo propõe analisar esse paralelismo, explorando os elementos que ligam a apostasia da monarquia israelita à corrupção teológica e institucional do Cristianismo ao longo dos séculos.
1. A divisão do reino como juízo divino
A divisão do reino de Israel após a morte de Salomão foi declarada vontade de Deus (2 Crônicas 11:4)[¹]. Essa cisão serviu de juízo contra a infidelidade do próprio Salomão (1 Reis 11:9–13), cujo sincretismo religioso resultou na decadência espiritual do reino. A introdução dos bezerros de ouro por Jeroboão I (1 Reis 12:28–30) marca o início de um modelo de idolatria política e religiosa que jamais foi abandonado no reino do Norte — frequentemente referido como “o pecado de Jeroboão”[²].
2. A apostasia persistente como fator do exílio
Os exílios do Norte (Assíria, 722 a.C.) e do Sul (Babilônia, 586 a.C.) foram consequência da rejeição sistemática da aliança por parte dos reis e do povo, apesar das contínuas advertências proféticas (2 Crônicas 36:15–16). O profeta Ezequiel registra que a restauração teria como principal objetivo vindicar o nome do Senhor entre as nações (Ezequiel 36:22–23), nome esse que fora profanado pela conduta dos israelitas no exílio[³].
3. O eco dessa história na Igreja Cristã
De maneira paralela, a igreja cristã primitiva, após o período apostólico, começou a se afastar da simplicidade das Escrituras. A influência das filosofias helenísticas — especialmente o platonismo e o estoicismo — moldou uma teologia cada vez mais alegórica e hierárquica. Orígenes de Alexandria (c. 185–254) foi um dos principais responsáveis por popularizar a interpretação alegórica das Escrituras, tentando harmonizar fé e razão grega[⁴].
Com o tempo, a autoridade da igreja foi concentrada no bispo de Roma, especialmente após o colapso do Império Romano do Ocidente (476 d.C.). O título “Pontifex Maximus”, originalmente um título do imperador romano como sumo sacerdote do paganismo, foi apropriado pelos papas como símbolo de supremacia religiosa[⁵].
4. A cegueira espiritual e a autolegitimação do erro
Tanto os reis de Israel quanto líderes da igreja institucionalizada acreditavam estar fazendo a vontade de Deus. A autolegitimação do erro — a crença de que se está no caminho certo mesmo em rebelião — é um fenômeno recorrente (Jeremias 7:4; Mateus 23:27–28). A rejeição da verdade frequentemente se dá não por ignorância, mas por resistência consciente à luz, como declarou Jesus em João 3:19–21[⁶].
Conclusão
A apostasia dos reis de Israel e Judá oferece uma advertência clara e profética à igreja cristã de todos os tempos. O chamado à fidelidade, à reforma contínua e ao retorno à centralidade das Escrituras permanece urgente. O padrão bíblico revela que sempre que o povo de Deus se mistura com ideologias externas e negligencia a Palavra, os resultados são desastrosos. Mas Deus, em sua misericórdia, sempre suscita remanescentes e reformas. Que esta análise leve cada leitor a refletir sobre o próprio papel na preservação da verdade do evangelho.
Referências
[¹] Bíblia Sagrada, 2 Crônicas 11:4.
[²] Ver 2 Reis 17:21–23 e a repetição da expressão “os pecados de Jeroboão”.
[³] Ezequiel 36:22–23; ver também o contexto dos capítulos 34–37.
[⁴] Orígenes, De Principiis, Livro IV. Trad. Butterworth.
[⁵] Hans Küng, A Igreja Católica: Breve História, São Paulo: Paulinas, 2003, p. 57.
[⁶] João 3:19–21; Mateus 23:27–28.